A Vidência Esquecida

Benício Fernandes era assíduo freqüentador de um grupo espiritista, mas, nunca se furtara à enorme contrariedade por não participar da visão direta, dos quadros movimentados da esfera invisível. Desejava, ardentemente, os dons mediúnicos mais avançados. Fazia inúmeros exercícios para obtê-los. Iniciavam-se os trabalhos habituais e lá estava o nosso amigo em profunda concentração, ansioso por surpreender as visões reveladoras. Tudo, porém, em torno do seu mundo sensorial, era expectação e silêncio. Terminada a reunião, ouvia, velando a própria mágoa, certas descrições de alguns companheiros. Este observara a presença de Espíritos amigos, aquele contemplara maravilhoso quadro simbólico. Falava-se de mensagens, de painéis, de luzes entre vistas. Dentre os visitantes comuns, de passagem pelo grupo, surgiam preciosos casos de fatos vividos. Havia sempre alguém a comentar um acontecimento inesquecível, de sabor doutrinário, ocorrido no seio da família.

Benício não conseguia disfarçar a inveja e o desgosto e despedia-se, quase bruscamente, nervoso, fisionomia estranha e taciturna, para entregar-se em casa a pensamentos angustiosos.

Por que razão não conseguia perceber as manifestações do plano espiritual? Seria justo acompanhar o esforço dos companheiros, quando, a seu ver, se sentia desatendido em suas necessidades?

A coisa ia assumindo caráter de terrível obsessão. Nosso amigo não mais ocultava o mal-estar íntimo. Se alguém, depois de uma prece, o interrogava sobre as observações próprias, esclarecia em tom desabrido: “Nada vi, nada sinto. Acredito que sou uma pedra!”

Aquelas atitudes revelavam profunda desesperação aos companheiros preocupados. A situação agravava se cada vez mais, quando, uma noite, Benício sonhou que aportava ao mundo espiritual, convocado por um amigo desejoso de receber suas notícias diretas. Na paisagem de intraduzível beleza, o desvelado mentor abraçou-o e cogitou das suas amarguras. O pobre homem estava deslumbrado com o que via, sem encontrar meio de expressar a sensação de gozo que lhe ia na alma; toda via, respondeu - sem hesitação:

- Meu grande benfeitor, não me posso queixar da minhas lutas terrenas, mas não devo ocultar minha grande mágoa. 

A respeitável entidade fez um gesto interrogativo, enquanto Benício continuava: 

- Desgraçadamente, para mim, embora participe dos esforços de uma nobre agremiação de estudos evangélicos, nunca vi os Espíritos!. . . 

- Mas não estás com a luta temporária da cegueira! Objetou o amigo venerando, afavelmente. - Esqueces, acaso, que teu plano de trabalho está igualmente povoado de Espíritos em diversos graus da ascensão evolutiva?! Crês, porventura, que, os habitantes da Terra sejam personalidades, estranhas à comunidade universal? 

Benício Fernandes experimentou imenso choque. Aquela interpretação inesperada lhe desnorteava os pensamentos. Como desejasse retificar o engano de suas cogitações, acentuou com algum desapontamento:

- Sinto ânsia ardente de contemplar os Espíritos protetores, beijar-lhes as mãos todos os dias, manifestando-lhes meu reconhecimento.

- Esqueceste tua velha mãezinha? - perguntou o mentor solícito. - Há quanto tempo não te recordas de orar com ela, osculando-lhe as mãos carinhosas? Acreditas, talvez, que os cabelos brancos dispensam os carinhos? E teu tio; esgotado nos trabalhos mais grosseiros do mundo, por ajudar tua mãe, na viuvez? Olvidaste, Benício, esses Espíritos protetores de tua vida?

O discípulo da Terra experimentou frio cortante na alma; no entanto, prosseguiu:

- Compreendo... Mas não me posso furtar ao desejo de entrar em contacto com as nobres entidades que dirigem ali tarefas e conhecer-lhes os superiores desígnios. 

- Não recordas teu chefe de trabalho diário? - interrogou o benfeitor venerável.

- Ele é um bom Espírito dirigente. Supões que a tua oficina e a sua administração estivessem no mundo, a esmo? Não desdenhes a possibilidade de integrares elevados programas de ação do teu diretor de trabalhos terrestres. Auxilia-o com a boa-vontade sincera. Antes de examinar-lhe as decisões com pruridos de crítica, -procura algum meio de contribuir com o teu esforço, honrando-lhe os propósitos. E como o interlocutor estivesse, agora, profundamente emocionado, o amoroso mensageiro continuou:

- Olvidaste os diretores da instituição doutrinária onde buscas benefícios? Aqueles irmãos muitas vezes são caluniados e incompreendidos. Considera-lhes os sacrifícios. Quase sempre sofrem os ataques da malícia humana e necessitam de companheiros abnegados para a obra generosa de suas fundações fraternais. É justo que não sejas apenas mero sócio contribuinte de despesas, materiais, e sim participante ativo do trabalho evangélico, isto é, sincero sócio de Jesus-Cristo.

O aprendiz da Terra sentia-se extremamente envergonhado. Suas idéias modificavam-se em ritmo vertiginoso. Entretanto, na sua feição de homem do mundo, pouco inclinado a ceder das próprias opiniões, redargüiu em tom de mágoa:

- Sim, meu bondoso amigo, reconheço a justiça e a grandeza das vossas observações; entretanto, nas minhas atividades terrenas, queria ver, pelo menos, algum Espírito sofredor, alguma entidade necessitada, ou ignorante. . .

Valendo-se da pausa que se fizera espontânea com os derradeiros argumentos, o carinhoso emissário voltou a dizer:

- Almas desalentadas, entre feridas e angústias? Seres necessitados de assistência e de luz? Não te lembras mais dos filhinhos que o Céu te concedeu? Penetras cegamente os portais da tua instituição, a ponto de não veres os enfermos e derrotados da sorte que ali procuram o socorro do Evangelho de Jesus-Cristo? Nunca viste os que se aproximam da fonte das bênçãos, tomados de intenções mesquinhas e criminosas, terríveis obsessores dos operários fiéis?

Benício estava agora extático, demonstrando haver afinal compreendido.

- Andas assim tão esquecido da vidência preciosa que Deus te confiou? - prosseguia o mentor espiritual, solicitamente. - Se ainda não pudeste contemplar os Espíritos benfeitores, ou malfeitores, que te rodeiam na Terra, como queres conhecer e classificar as potências do Céu? Volta para casa e procura ver!...

Nesse instante, Benício sentiu-se perturbado pela explosão de um ruído imenso. 

Era o relógio que o despertava. Acordou, esfregou os olhos e preparou-se para tomar o trem suburbano, dentro de alguns minutos.

Nessa manhã, Benício Fernandes levantou-se, tomou o café, abraçou mais afetuosamente a esposa e os filhinhos. Cada coisa da sua modesta habitação apresentava, agora, aos seus olhos, uma expressão diferente e mais preciosa. Antes de sair foi beijar as mãos de sua mãe paralítica, o que há muito não fazia; perguntou pelo velho tio que saíra mais cedo, e, engolfado em grandiosos pensamentos, dirigiu-se para o trabalho, meditando na Providência Divina que lhe havia permitido receber uma lição para o resto da vida.


Humberto de Campos