Ao Meu Querido Comprade Martinho Totó

Tenho boas e más notícias, compadre. Começo logo pela má: estou morrendo. Mas não se assuste não que eu não estou assustado. Com um pouco de medo, confesso, mas sem sustos. A morte é a única certeza desta vida, compadre, e como o senhor sabe bem melhor que eu, tudo o que um dia nasce, há de morrer um dia desses e eis que chegou o meu dia.
Não sei qual a moléstia que me mata. Sou de opinião que é melhor não saber o mal que se acomete e disse ao doutor que não quero perder muito tempo pensando no que me mata. Morro e pronto.
Sabe o que é intrigante? Passamos a vida inteira (ou boa parte) pensando no fim, em como morreremos. Agora que morro penso muito no que fui, entende? Começo a olhar para trás para enxergar e entender o que fiz. Lembra-se de como fui namorador? Por onde andará a Susana da rua Leandro de Menezes? Era bonita a morena!
Talvez o senhor ainda se recorde das tardes de domingo no bar, das pingas, da conversa, do jogo de baralho. Sabe, lembrei agora que também fui valente em meu tempo de mocidade. Talvez o compadre se lembre de quando enfrentei o Tião Barulho?
Apanhei, admito, mas fui o único que teve a coragem de enfrentá-lo, de olhar bem nos olhos do diabo. Desse dia não me esquecerei.
Num outro dia estava sentado à porta de casa, descalço e olhando as pessoas que passavam na rua, poucas, bem poucas, e vi uma senhora que passou acompanhada de sua neta. Acompanhada não é bem a palavra: a avó ia à frente e a neta a seguia, bem atrás. E pensei (esta capacidade, a de pensar, a aproximação da morte ainda não me tirou, eu penso!), pensava que é assim mesmo. Nossos netos começam por nos seguir, tentam nos acompanhar, esticam as pernas o mais que podem e um belo dia crescem e passam a andar na frente, então somos nós que tentamos alcançá-los e nesse dia esteja certo, compadre, é chegada a hora...
Aquela senhora que vi passar acompanhada da neta ainda está longe da morte, a neta ia quase dois metros atrás, mas no dia em que alcançar a avó... Você, se tiver netos e quiser viver muito, cuide de deixá-los sempre atrás. Eu deixei que os meus passassem à frente. Já vivi tudo o que queria viver, morro. E morro filósofo! O senhor há de admitir que essa minha tese tem ares de filosofia e poderia até lhe dar um nome: “A Filosofia do Passo” ou ainda o “Passo da vida”.
A boa notícia é que junto desta carta vai aquele dinheiro que o senhor me emprestou para fazer os exames médicos. Morro na honestidade sem dever nada a ninguém (talvez à consciência). Procure no fundo do envelope... e o sol brilha, compadre!
No mais é avisar aos amigos e até o dia do velório. Abraços!

Seu compadre e amigo: João de Palmas.


Ângela Calente - Delfos