Até os Elefantes

A não-aceitação da reencarnação ou o seu desconhecimento na análise da relação entre pais e filhos restringe o nosso entendimento quanto aos planos da Espiritualidade para a formação da família da Terra. A famosa explicação do deus-quis-assim nos leva a imaginar uma roleta divina que determina quem será filho de quem e assim por diante. Esse entendimento simplório nos levaria a honrar a nosso pai e nossa mãe até por uma questão de lógica – sendo nossos pais nossos próximos mais próximos, a eles devemos amor e respeito. E ponto final. Até a lei da caridade nos respaldaria nesse raciocínio.
Já o conhecimento e a aceitação do mecanismo da reencarnação, concebido pela Sabedoria Divina como instrumento para a evolução do espírito, só faz enriquecer o nosso entendimento quanto a essa complexa – mas bem-bolada – relação pais/filhos.
Sabemos que muitas vezes nas programações espirituais – onde nunca prevalece o acaso – o filho pode até ter a missão de colaborar no crescimento espiritual dos pais. Mas o inverso é que é a regra geral, "os pais auxiliando os filhos no seu crescimento intelectual e moral" (Cap. XIV – ESE). Sentimentos de antipatia ou de afeição recíproca irão reger tais relações, pelo fantástico recurso da sapiência do Criador de, através da consangüinidade, resolverem-se questões de antagonismo às vezes seculares, podendo parecer até insolúveis.
Toda criança – entenda-se todo espírito – traz a sua bagagem de aquisições de vidas passadas. Os instintos bons ou maus eclodem mais cedo ou mais tarde, no decorrer da existência. Segue-se a isso a influência do meio, que tanto contribui para a queda ou a elevação moral do indivíduo.
Assim, a missão dos pais cresce em importância aos olhos de todo aquele que abraçou a Doutrina Espírita. Nós espíritas conhecemos a causa das imperfeições e temos por obrigação sermos pais diferentes: mais responsáveis, mais compreensivos e amorosos. Por essas e outras, jamais o espírita deve ser um pai ausente. Quando dizemos pai, óbvio que queremos dizer pai e mãe. Quando dizemos pais ausentes, queremos dizer pais que estão afastados fisicamente, ou que, embora perto fisicamente, estão longe, em se falando de sentimento, carinho ou participação efetiva na educação a que se propuseram na erraticidade.
A família do leitor, como a minha, pode ser recheada de presenças e não de ausências. No entanto, sabemos, é imperioso voltarmos o nosso coração para os irmãos de humanidade que não contam com o aconchego da família, com o amparo de pais. Temos assistido ao triste quadro das gerações que nascem, vivem – ou sobrevivem – e, comumente, morrem nas ruas. No abandono, os instintos viciosos do passado afloram sem freios. Não há um norte. É o meio hostil falando mais alto.
Lemos na revista Veja de 15/out/1997 um texto muito interessante sobre o comportamento agressivo que vêm demonstrando elefantes da África do Sul que cresceram sem pais. Diz a reportagem que os enormes adolescentes, aparentemente sem motivo algum, têm cruelmente matado rinocerontes em vários parques nacionais africanos, promovendo um festival de sangue nas savanas.
Por necessidade de controle populacional e de equilíbrio ecológico em algumas regiões em que vivem os paquidermes, lamentavelmente os pais têm sido sacrificados pelas autoridades ambientais, sendo seus filhotes transladados para outras reservas que necessitam dos animais.
Os matadores gigantes, portanto, procedem de "lares desfeitos" e crescem sem orientação e controle por parte de adultos com mais vivência. Ressalta a reportagem que existe uma fase na vida desses animais em que o hormônio testosterona torna os machos mais agressivos. Mas, numa comunidade de elefantes, os mais velhos fazem o papel de educadores, contendo ímpetos assassinos dos mais novos, mantendo-os "na linha".
A orfandade premeditada, então, apresenta conseqüências desastrosas. Eis o fator ausência de pais implicando danos irreparáveis até entre os quase sempre pacatos elefantes.
Voltemos aos humanos.
Criança abandonada, pais ausentes, inexistentes. "A Lei de Causa e Efeito explica", diriam alguns. "Merecimento... que se há de fazer..." – podem até dizer outros, voltando as costas. Eis uma forma descaridosa e rude de interpretar a terrível questão do abandono, por uma ótica supostamente espírita. É uma “lógica” espírita que, despida de Evangelho, cristaliza os corações. Ao julgarmos o merecimento dos outros, não devemos nos esquecer que estamos neste planeta porque as nossas conquistas morais só permitiram isso até o momento.
No caso de órfãos de pais ausentes – vivos, ou mortos, ou vivos-ausentes –, há de se guardar "para depois" o raciocínio cartesiano quanto ao que se fez em outras existências para merecer esse tipo de miséria. Existem momentos em que a caridade, o amor fraterno têm de ser usados de imediato, sem perguntas, sem especulações. Basta o fato em si.
Afinal, se crianças, tivéssemos pais ausentes, como gostaríamos que a sociedade procedesse conosco? Em primeiro lugar, explicando-nos a razão provável da nossa desdita? Ou, antes de qualquer coisa, estendendo-nos a mão?


Aristides Coelho Neto