O Anjo e a Lama

Dia de inverno nevoento.
Desce um homem do carro,
Fita a longa extensão do caminho de barro
E acusa a terra, em volta,
Tomado de revolta,
Irritado e violento:

- Maldita lama!...
Não posso me arriscar
Neste caminho imundo;
Meu carro habituado à firmeza do asfalto,
Decerto tombaria em qualquer salto.
Maldita seja a hora
Em que saí de casa...

E disse para a esposa que o ouvia:
- melhor voltarmos noutro dia.
E esquecer este chão que me enerva e me arrasa.

O solo humilde e escravo
Assinalou o agravo
E entrou em singular abatimento;
Mas um dos anjos de orientação
Do campo, que agüentava o assalto da garoa,
Parou no mesmo ponto, onde o homem gritara
E disse à terra úmida: - Perdoa
Os insultos que ouvistes...
Continua servindo...Não te acuses...

Chamam-te lama vil ou barro triste;
Entretanto, nas leis da natureza,
Ninguém consegue pão à mesa
Sem recorrer ao trigo que produzes.
Denominam-te chão lodoso e feio;
Nota, porém, os teus acusadores
Querem consigo as flores
Que te nascem do seio.
O homem é um ser estranho; muita gente
Que te condena e te maldiz
Não conhece o tijolo, a telha e o corpo das paredes,
Com que fazes no mundo
Tanta gente feliz.

O asfalto, na verdade, é indício de progresso
Para as rodas de todos os matizes,
Mas não sabe o processo
De acalentar sementes e raízes
Para que a planta se estenda,
Por mágica oferenda
De supremo valor,
A colheita que ajuda a conservar
A fartura no lar
Onde a vida situa a presença do amor.
Lama, somente lama desprezível,
Chamam-te aí no mundo,
Mas quase ninguém sabe,
Talvez com exceção da mãe bovina,
Que deus te honrou com a erva, pela qual a pastagem se conserva,
Para o leite seja, ante a criança,
A essência da esperança,
Alimento e calor da Bondade Divina.
Não te magoem críticas e golpes,
Não olvides que, em ti, deus resguarda e resume 
A química da vida que transforma
O esterco envilecido em vagas de perfume!...

A gleba imensa ouvia a mensagem celeste;
Esqueceu toda a injúria...Parecia
Que a luz do sol voltando a beijava e envolvia,
Procurando aquecer-lhe
Todas as energias interiores...
Desde esse dia, a lama desprezada,
Sentiu-se renascer para nova alvorada
E passou, de maneira invariável,
A responder sem mágoa a quaisquer agressores,
Trocando acusação, golpe e azedume
Por ondas generosas de perfume,
Em braçadas de flores.


Maria Dolores