Último Argumento

Não queria reencarnar. Lutava contra.

Embora as exortações dos benfeitores que o recolhiam, desejava prosseguir esperando-a. Esperar a mulher que lhe embelecera os sonhos da juventude. Perdera-a, sim, mas sabia agora que o túmulo não apagava a existência. Por ela, amargara o suicídio. Loucura. Contrariado pelos pais que não lhe aprovavam a escolha atingira as raias da impaciência. 

Dulcila era tudo. Junto dela, olvidava dificuldades, temores, sofrimentos... Bebia a esperança por seus olhos azuis. Durante o dia, procurava-a deslumbrado em cada sorriso de criança e supunha vê-la no colorido de cada flor.

Aguardava, ansioso, o instante de recolher-lhe o sorriso de doce colegial, na pequena cancela da casa pobre.Os cabelos eram bastos fios de veludo negro a lhe emoldurarem a expressão de menina.

Passeavam de mãos dadas, faziam promessas de eterno amor. Aqui e ali, tonto de felicidade, colhia margaridas silvestres para ofertar-lhe um buquê. Ela sorria, corada, feliz. E tornando a casa, Dulcila era a imagem constante dos sonhos que lhe povoavam a noite.

Devaneava, mentalizando o lar do futuro. A escolhida transformada em esposa, e filhinhos a lhe abraçarem o pescoço, dizendo “papai”. Entretanto, a família fora inflexível. Os próprios genitores haviam tramado a separação. Seria enviado ao estrangeiro. “O tempo é o anestésico do amor” – dissera-lhe a palavra maternal, entre severa e confiante. Portugal seria o desterro.

Complicações atrás de complicações.

Não resistira. O veneno banira-o do corpo. 

O exílio procurado, assim, por ele mesmo, fora talvez mais cruel. Padecera o indescritível. Acompanhara a desagregação das próprias vísceras. Chorara, segregado em pavoroso abismo.

Socorrido, porém, por beneméritos guardiães do Mundo Espiritual, submetera-se às instruções para o reajuste e esperara o tempo com paciência.

Em todas as dores e expectações, contudo, fora Dulcila a visão regenerativa. Ela, sempre ela a guia-lo. Luz interior. Anjo refletido no espelho de sua própria alma.

Com semelhantes reflexões, Aurélio, desencarnado, tornava a Olinda, depois da ausência de trinta anos.

Chorando, emocionado, viu de novo o mar tocar, de leve, a praia sem diques. 

Entretanto, por toda parte, o vazio melancólico. 

A casa paterna tinha moradores diferentes. E o ninho da janela florida desaparecera.

Dulcila! Dulcila! Onde estava Dulcila que não soubera ou não pudera espera-lo? Chorou em prece. Queria vê-la, senti-la de perto outra vez.

Desolado, ouviu alguém: - Aurélio, vamos! vamos! 

Voltou-se. Era complacente amigo do lar espiritual de que se fizera hóspede.

Acompanhou-o e, em poucos instantes, atingiram elegante residência em Recife. Contornaram o edifício, ganhando os fundos. À porta de pequeno pavilhão estava gorda senhora, em avental muito branco. Mais pelo olhar que pelo porte, nela reconheceu a amada de outro tempo. Aproximou-se; no entanto sentiu-se mal.

Dulcila, ostentando cabelos tintos e jóias caras, procurava disfarçar as pregas do rosto. Um não sei quê lhe causava repugnância. Ouviu choro de crianças. Choro alto. O amigo arrancou-o ao torpor, conduzindo-o para dentro. Duas jovens, deitadas em leitos simples, mostravam profundo abatimento.

- Que choro é este? – perguntou assombrado.

- São vozes de crianças não nascidas - disse o companheiro -; estamos numa casa dedicada à criminosa indústria do aborto.

Como que varado por bala assassina, Aurélio recuou.

No pátio, a mulher que lhe fora ídolo estava agora junto de um homem de meia-idade.

O recém-chegado pespegou-lhe um beijo na face pintada e perguntou:

- Quantos casos hoje, meu amor?

- Quatro.

- Tudo bem? Gente boa?

- Como não? – respondeu a dama, piscando um olho.- Nada menos que dois mil cruzeiros cada um... São oito mil.

- Minha Cicila, minha Cicila – exclamou o cavalheiro risonho -, você hoje merece jantar fora... Vamos celebrar...

Aurélio baqueou.

Caído, ali mesmo, no pátio interno, em lágrimas abundantes, rogou à Divina Providência a felicidade de renascer.


Hilário Silva