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– Vamos Luísa! – exclamava Inácio Penaranda, dirigindo-se à esposa afetuosamente – creio estimarás o tema evangélico desta noite. Prometem-nos valiosas conclusões, relativamente à mediunidade e seu exercício. Ao que suponho, os esclarecimentos apresentarão singular interesse para nós ambos.

Luísa apoiou o rosto na mão direita, num gesto muito seu, e disse com enfado:

– Ora, Inácio, achas que posso cometer a imprudência de enfrentar a noite chuvosa? E a minha nevralgia? A gripe do Carlos e o reumatismo de mamãe? Não teria ouvido para as lições a que te referes. Francamente, não posso compreender tuas boas disposições invariáveis.

Inácio aprimorava o nó da gravata e respondia:

– Compreendo os teus cuidados, mas devo lembrar que há três anos te esquivas à minha companhia. Naturalmente, devo ser o primeiro a encarecer tuas virtudes de filha e mãe; creio, porém, que exageras o sentido das enfermidades. Em vão procura interessar-te nos problemas da , inutilmente busco inclinar-te a mente para os problemas mais nobres da vida. Não sabes falar senão de doenças, insânias, ventosas, injeções e comprimidos. Vives quase esmagada por expectativas angustiosas. A chuva aborrece-te, o frio te atormenta, o vento leve te atemoriza. Tudo isso é de lamentar, porque nossa casa não se formou no pântano da ignorância, mas nos alicerces de conhecimentos sólidos. Nossa consagra a iluminação íntima como patrimônio mais precioso do mundo. Por que, então, viver assim, descrente de Deus e de ti mesma?

A Srª Penaranda esboçou um gesto de sensibilidade ofendida e redargüiu chorando:

– Sempre as mesmas exortações ásperas! Quando me poderás compreender? Sabe Deus minhas lutas, meus esforços para reaver a saúde perdida!...

– Certamente, Deus não desconhece nossos trabalhos, mas também não poderia aplaudir nossas inquietações injustificadas.

Dona Luísa cravou os olhos no companheiro, extremamente excitada, e bradou:

– Céus! Que infelicidade a minha! Que mágoa irremediável! Estou só, ninguém me compreende. Valha-me Nosso Senhor Jesus - Cristo!...

Após dirigir-lhe um olhar de piedade, o marido despedia-se:

– Não precisas aumentar a lamentação. Até logo.

A companheira torcia as mãos, desconsolada; todavia, escoados alguns minutos, correu à porta de saída a gritar:

– Inácio! Inácio!

Ele voltou a indagar os motivos do chamamento.

– A capa! – explicava a dona da casa, ansiosamente. – Esqueceste a capa... Lembra-te de que me sinto aniquilada. Não queiras também arruinar a saúde.

Inácio, resignado, vestiu o capote impermeável e saiu calmamente.

Aquela mania da Srª. Penaranda, contudo, era muito velha. Dona Luísa não enxergava senão miasmas e pestilências por todos os lados. Embora as dores que cultivava, grande parte do dia era por ela empregado em esfregar metodicamente o assoalho, receosa do acúmulo de pó. Nunca permitia que o filho se levantasse da cama antes que o Sol inundasse as dependências da casa; trazia a velha genitora quase totalmente enfaixada num quarto escuro, rodeada de ungüentos e caixas de injeções, e para si mesma descobria diariamente os mais extravagantes sintomas. Referia-se a dores nos braços, nas pernas, no rosto. Dizia-se vitima de todos os sofrimentos físicos. A imaginação enfermiça engendrava moléstias nas mais ínfimas sensações e, na residência dos Penaranda, nos fins de mês, as contas da farmácia superavam todas as demais despesas reunidas. Debalde o marido lhe oferecera as luzes do Espiritismo cristão, ansioso por modificar-lhe as disposições mentais. Dona Luísa furtava-se às observações mais sérias e não sabia viver senão entre sustos, pavores e preocupações. Raro o dia em que, ao voltar dos serviços habituais, o companheiro não a encontrava afogada em grosso costume de lã, hermeticamente encafuada na alcova, a lamentar o vento, a umidade, a nuvem...

De quando em quando, valia-se Inácio de oportunidades da conversação comum, tentando incutir idéias novas no espírito da companheira, de modo a criar-lhe ambiente diverso. A teimosa senhora não se resignava a omitir comentários a doenças de toda sorte.

Quando a situação doméstica se tornou mais grave, o chefe da família não se conteve e intimou a esposa a ocupar-se de assuntos mais elevados, compelindo-a a examinar nobres problemas espirituais e a ouvir preleções evangélicas em sua companhia.

Dona Luisa atendeu, porém constrangidamente, a queixar-se amargurada. No curso das reuniões a que compareceu forçada pelo marido, causava compaixão a quantos lhe ouviam a palavra lamentosa. A infeliz criatura não andava; arrastava-se. Suas considerações sobre a vida eram acompanhadas de suspiros comovedores, como se a sua palestra não devesse passar de gemidos longos. Não ouvia as dissertações construtivas nem participava das orações no ambiente geral. Apenas prestava atenção às consolações de Salatiel, o amorável benfeitor invisível que comparecia a quase todas as reuniões. À maneira de criança viciada a receber carinhos, cheia de noção exclusivista, Dona Luisa agarrava-se às expressões de conforto, completamente alheia aos apelos de ordem espiritual. Parecia, contudo, tão esmagada de padecimentos físicos, que a Srª. Marcondes, devotada médium do Grupo, se ofereceu voluntariamente a levar-lhe socorros espirituais na própria residência. A família Penaranda aceitou, sumamente reconhecida. Enquanto Inácio examinava a possibilidade da renovação mental da esposa, antegozava Dona Luisa o momento em que pudesse conversar com o Espírito Salatiel, quase a sós, para comentar as enfermidades numerosas que lhe invadiam o corpo e lhe assaltavam o lar.

Começaram os trabalhos de assistência, em círculo muito íntimo.

O dono da casa não cabia em si de esperança e contentamento.

Na primeira noite de orações, Salatiel discorreu sobre a Providência do Eterno Pai e as divinas possibilidades da criatura. O verbo amoroso e sábio da venerável entidade extravasava luz de esclarecimento e mel de sabedoria. Mas, com enorme surpresa dos presentes, fenda a preleção, Dona Luisa adiantou-se, interpelando o instrutor invisível:

– Meu caro protetor, antes de vos retirardes gostaria de vos ouvir sobre as dores que venho sentindo no braço esquerdo.

Depois de prolongado silêncio, o amigo espiritual, como o homem educado a atender uma criança, respondeu qualquer coisa que a induzia à confiança no Poder Divino.

A consulente não se deu por satisfeita e pediu explicações para a comichão que sentia nos pés; também sobre o abatimento do filhinho e um exame dos órgãos de sua velha mãe. Sentindo-se crivado de interrogações inoportunas, o benfeitor invisível prometeu alongar-se convenientemente no assunto, na reunião da semana seguinte.

Com efeito, na sessão imediata, compareceu Salatiel e endereçou significativa mensagem à Srª. Penaranda.

– Minha irmã – dizia ele solicitamente –, não construas cárcere mental para as tuas possibilidades criadoras na vida. É razoável que o doente procure remédio, como o sedento se encaminha à fonte amiga que lhe desaltera a sede. Não envenenes, porém, os teus dias no mundo com a idéia de enfermidades. Por que esperar a saúde completa, num plano de material imperfeito como a Terra? Se o planeta é, reconhecidamente, uma escola, é justo não possa constituir morada exclusiva de educadores. Se a reencarnação é desgaste de arestas, como aguardar expressão de pureza absoluta nos elementos em atrito? O corpo humano é campo de forças vivas. Milhões de indivíduos celulares ai se agitam, à moda dos homens nas colônias e cidades tumultuosas. Há contínuos serviços renovadores na assimilação e desassimilação. Se isto é inevitável, como aguardar perfeita harmonia orgânica na máquina celular desmontável e perecível? Lembra-te de que esse laboratório corporal, transformável e provisório, é o templo onde poderás adquirir a saúde eterna do Espírito. Andaria acertado o crente que se deixasse deter voluntariamente no lodo que recobre as paredes da sua casa de oração, indiferente à intimidade sublime e profunda do santuário? É justo que as figurações externas requisitem a nossa atenção, mas não podemos esquecer o essencial, o imperecível e o melhor. Pondera minhas despretensiosas palavras e liberta a mente encarcerada nas sombras transitórias, recordando o ensinamento de Jesus quando asseverou que nosso tesouro estará sempre onde colocarmos o coração.

Dona Luísa, porém, continuou impermeável às admoestações nobres e elevadas. Não valeram conselhos de Salatiel, com amorosas interpretações do marido e dos irmãos na .

Os anos agravaram-lhe preocupações e manias, até que a morte do corpo se encarregou de atirá-la a novas experiências.

Qual não lhe foi, porém, a surpresa dolorosa ao ver-se sozinha, abandonada, sem ninguém?! Guardava a nítida convicção de haver transposto o limiar do sepulcro, mas continuava prostrada, experimentando vertigens, dores, comichões. Tomada de pavor, observava os pés e mãos singularmente inchados, a epiderme manchada de notas gangrenosas dos derradeiros dias na Terra. Orava, e contudo as suas orações pareciam sem eco espiritual.

Quanto tempo durou esse martírio? Luísa Penaranda não poderia responder.

Chegou, no entanto, o dia em que pôde lobrigar o vulto de Salatiel, depois de muitas lágrimas.

– Oh! venerável amigo! – exclamou a desencarnada, agarrando-lhe as mãos – por que semelhantes sofrimentos? Não é certo que deixei a experiência terrestre? Não ouvi muitas vezes que a morte é libertação?

Enquanto o generoso emissário a contemplava, compadecido, a infeliz continuava:

– Onde a justiça de Deus que eu esperava? Nunca fui má para os outros...

A essa altura, o benfeitor espiritual tomou a palavra e esclareceu:

– Sim, Luísa, nunca foste má para os outros, mas foste cruel contigo mesma. Não sabes que toda libertação ou escravização podem começar na Terra ou nos círculos invisíveis? Sepulcro é mudança de casa, nunca de situação espiritual. A morte do corpo não elimina o campo que plantamos. Aliás, é a sua mão que nos oferece a colheita. Preferiste a idéia de enfermidade, cultivaste-a, alentaste-a. É natural que teu campo aqui seja o da enfermidade. Não existe outro para quem, como tu, não quis pensar noutra coisa.

E, ante o olhar assombrado da infeliz, Salatiel rematava:

– Existe o Reino de Deus que aguarda a glorificação de todas as criaturas, e existem os reinos do «eu», onde nos internamos pelas criações do próprio capricho.

Abandonemos os reinos inferiores das nossas ilusões, minha boa amiga! Procuremos o Reino de Deus, infinito e eterno!... 

A Srª. Penaranda sentiu arfar-lhe o peito, alucinada de esperanças novas.

– Leva-me contigo, generoso Salatiel! Livra-me destes dolorosos padecimentos!... Ensina-me o caminho da Liberdade!...

O mensageiro lançou-lhe um olhar fraterno e, fazendo menção de retirar-se, acentuou:

– Posso, como outrora, convidar-te, não, porém, arrastar-te. O problema pertence ao teu foro individual.

O trabalho é do teu campo. Arranca-lhe a erva daninha e semeia-o de novo. Vem conosco, Luísa. Ajuda-te. Se te sentes verdadeiramente cansada da escravidão em que tens vivido, recorda que para a libertação do Espírito todo minuto é tempo de começar.


Por: Humberto de Campos, Do livro: Reportagens e Além Túmulo, Médium: Francisco Cândido Xavier


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